Leia abaixo, na íntegra, artigo do senador Alvaro Dias publicado nesta quarta-feira (09/09) no site do jornal Estado de S.Paulo:

A sedução e a alternância do poder

*Alvaro Dias

*José Luiz Delgado

Contra a tendência demasiado humana de apego ao poder foram erigidas as instituições republicanas, que sempre tiveram entre seus elementos principais, como pilar forte, a alternância nos cargos políticos. Trata-se de corolário da ideia de que o poder pertence fundamentalmente ao povo e não a determinadas pessoas ou grupos.

Já se conhecem as razões pelas quais a reeleição não é recomendável. A entrada da sua figura para os cargos executivos em nossa Carta Constitucional foi um episódio infeliz. Na prática, o que se tem é um mandato duplo, com a possibilidade fraca de interrupção, pois que uma das tendências do exercício do poder é justamente a força de manter-se, de continuar. Daí também porque a preocupação de limitá-lo e contê-lo, por melhor sejam os mandatários momentâneos.

A reeleição carrega, quase que intrinsecamente, grandes problemas: incentiva o mandatário a se preocupar mais com sua manutenção no poder do que com seu mandato; favorece acordos prévios, algumas vezes espúrios, entre os envolvidos na demanda reeleitoral; induz aqueles que o circundam a prestar favores e reverências para sua própria manutenção; tende a desvirtuar o uso da máquina pública em proveito próprio, engessa estruturas e modelos de gestão, não beneficiando a renovação na administração pública.

Nas Mesas das Casas do Legislativo, o princípio da alternância dos poderes manifestou-se na Constituição de 1988 como manutenção da regra de proibição da reeleição para o mesmo cargo. Mais tarde, esse princípio foi, infelizmente, amortecido com a capciosa interpretação de que valeria apenas dentro da mesma legislatura. Ou seja, quando passadas eleições gerais, poderia haver recondução ao mesmo cargo.

Note-se que na Câmara dos Deputados isso exigiria pelo menos que o parlamentar houvesse sido reeleito e, portanto, novamente consagrado nas urnas. Além do mais, trata-se de regra que foi inscrita em seu regimento. No Senado Federal, nem uma coisa e nem outra. Não há previsão regimental. E, como o mandato é de oito anos (abrangendo duas legislaturas), é possível que o Senador seja reconduzido à Mesa em outra legislatura sem passar por novas eleições populares.

Agora, mesmo com a proibição categórica da Constituição Federal, vislumbra-se tentativa de abertura genérica da possibilidade de reeleição, abrindo-se a janela temerária de que um mesmo parlamentar não só passe um mandato inteiro na Presidência da Casa, como até mesmo, em tese, de que não saia jamais de lá. Porque ainda que se fale em permitir apenas uma reeleição, como a praxe já é que de uma legislatura para a outra considera-se nova eleição, pode-se alternar ilimitadamente de eleição em reeleição.

Há duas vias que estão sendo propostas para tanto. A primeira é a reinterpretação da Constituição e a segunda é a sua mudança direta.

A reinterpretação teria por base a aplicação da Emenda Constitucional nº 16, de 1997, que permitiu a reeleição dos titulares do Executivo. Segundo doutrinadores como Geraldo Ataliba, o motivo da proibição da reeleição para os cargos da Mesa seria a sua natureza executiva. Sustenta-se agora que, como seria esse o motivo original, ao acabar com a irreelegibilidade para o Executivo, a Emenda também teria tacitamente revogado a proibição de reeleição para os cargos da Mesa, de mesma natureza.

Ora, embora de fato seja possível que na vedação da reeleição para as Mesas tenha contribuído o entendimento de que se trata de função primordialmente executiva, trata-se de mera construção doutrinária, que em nada afeta ou modifica a vontade concreta da norma adotada pela Constituição. Não se pode afrontar uma norma clara e explícita com base em uma suposição. Admitir que uma suposta justificação doutrinária seja suficiente para acarretar a revogação de norma constitucional é uma demasia, um delírio jurídico.

A outra via que se tenta abrir para tanto, embora menos escandalosa, é igualmente infeliz: trata-se da alteração casuísta do próprio texto constitucional por meio de emenda.

Ao cabo, a alteração permitiria, como já se apontou, a monstruosa possibilidade de uma presidência perene nas casas legislativas – que é a contradição mais absoluta e mais cabal ao espírito republicano. Para o cidadão comum, chegaria a ser inexplicável que fóruns que se formam pelo livre e acessível caminho da renovação eleitoral, como são o Senado e a Câmara, advoguem a favor de norma que possa obstaculizar essa prática, enfraquecendo os veios democráticos.

Ademais, a modificação das regras do jogo para beneficiar o mandatário de plantão é uma manifestação absolutamente nociva de poder. O dirigente torna-se interessado na questão que irá conduzir, demonstra imoderado apreço pelo mando, torna seu interesse questão de Estado e divide seus pares, transformando seus apoiadores em aduladores e seus opositores em inimigos.

Nas Casas do Congresso, diminui-se o valor da instituição, desprezando os pares tão capazes quanto, inviabilizando, talvez de forma definitiva, que um colega possa oferecer seus serviços ao Parlamento e ao país. Ainda mais: impede-se o equilíbrio de forças políticas que devem se alternar no comando de uma casa legislativa democrática e, finalmente, corteja medidas e comportamento autoritário, personalista e voluntarioso.

Trata-se, portanto, nos dois casos, de verdadeiras perversões: uma jurídica (a reinterpretação) e a outra política (a emenda constitucional), inspiradas ambas pela servil acomodação diante dos poderosos do dia e em frontal desprezo, respectivamente, pela Constituição e pelas instituições.

Por bons e grandes que sejam os dirigentes, melhor é a República, maior é o Congresso. Não podemos admitir a reeleição para as Mesas das Casas do Legislativo.

*Alvaro Dias, líder do Podemos no Senado Federal

*José Luiz Delgado, professor de Direito Constitucional da UFPE